TALENTO

“O jogador para ser identificado tem de ser desenvolvido previamente.”

Daniel Barreira, 2020

Neste artigo trago um tema muito debatido no âmbito do futebol de formação: o TALENTO. Nas linhas que se seguem irei procurar esclarecer, de acordo com a minha perspetiva, este conceito de enorme complexidade e também os processos de identificação, de deteção, de seleção e de desenvolvimento.

“A pessoa nasce, o jogador faz-se.”

Júlio Garganta, 2018

               O talento é um conceito altamente complexo (talvez por isso seja um tema tão atrativo e apaixonante), uma vez que é influenciado por um conjunto de elevado de variáveis e depende de um conjunto de processos por si só complexos; é diverso, na medida em que o talento se pode manifestar em diferentes posições e/ou funções e através de diferentes caraterísticas e capacidades; contextual, porque depende do contexto; e subjetivo, pois dependerá sempre daquilo que o olhar de quem observa valora.

Como ponto de partida, considero fundamental perceber que o talento é uma emergência. Inicialmente, o talento evidencia-se pelo domínio de um conjunto de habilidades naturais (habilidades aprendidas e desenvolvidas pela prática em idades precoces – não confundir com inatas). Neste sentido, o talento primeiramente apresenta um valor potencial e só pela exposição ao processo de desenvolvimento e aprendizagem é que esse potencial poderá ser confirmado. Ou seja, o talento potencial será talento quando atualizado e validado pelo treino e pelo jogo.

“Uma prática adequada, consumada em ambientes estimulantes e com pessoas competentes, pode projetar qualquer ser humano para patamares de realização inimagináveis.”

Júlio Garganta, 2018

Entendendo o talento como fruto do processo de desenvolvimento, na formação para o alto rendimento o foco deverá orienta-se para esse processo. Pelo que, os clubes na sua formação devem ter duas grandes preocupações: procurar garantir que processo se prolongue no tempo (“regra das dez mil horas” ou “regras dos dez anos”), uma vez que a quantidade de prática tem um peso determinante para o alcance da excelência; e, ao mesmo tempo, que essa quantidade seja aliada à qualidade do processo. A qualidade tem que ver com o contexto de aprendizagem, onde se engloba o treino e o jogo, que por sua vez está dependente do trabalho desenvolvido pelo clube e pelo treinador, a competitividade e complementaridade interna e a exigência competitiva. Nota também para a importância da prática informal como parte do processo de desenvolvimento, quer do ponto de vista quantitativo como qualitativo.

Um fator com papel decisivo na aprendizagem e, consequentemente, no processo de desenvolvimento do talento é o erro. Entender o erro como elemento estruturante da aprendizagem proporciona uma maior disposição por parte dos jogadores para correr riscos e para experimentar caminhos inovadores, isto é, para saírem da zona de conforto. Assim, promove-se a descoberta, fomenta-se a diversidade, potencia-se a evolução e, em última instância desenvolve-se o talento.

“Tente outra vez. Falhe outra vez. Falhe melhor.”

Daniel Coyle, 2009

Embora o clube e o treinador tenham um papel determinante na forma como se encara o erro, também o jogador tem de ser capaz de o superar e crescer com ele. Neste sentido, a resiliência é apontada como um fator muito importante para o alcance do alto rendimento. No meu entender, parece-me mais ajustado falarmos em “antifragilidade”, uma vez que, segundo o autor deste conceito, Nicholas Taleb (2012), “O resiliente resiste aos choques e permanece o mesmo; o antifrágil melhora com eles.”.

Ora, neste momento torna-se pertinente abordar um elemento basilar em todo o processo do desenvolvimento do talento, não só como pilar de tudo aquilo que até aqui foi referido, como também enquanto veículo para o alto rendimento – a paixão. São as habilidades desenvolvidas nas idades mais baixas, através dos primeiros contactos com a bola, que originam uma auto perceção de talento e, consequentemente, podem despertar essa paixão. Sendo que, ao longo do processo é a paixão que sustenta a dedicação em termos de atenção e tempo ao treino e que alimenta a persistência e a superação.

Dada a importância da paixão e da antifragilidade no processo de desenvolvimento para o alto rendimento, para onde não existem atalhos, ambas devem ser consideradas aquando da identificação e seleção do talento.

Habitualmente, o processo de identificação é da responsabilidade dos treinadores e/ou scouts. Estes identificam os jogadores que se destacam – “outliers”, termo utilizado por Malcolm Gladwell (2008) – em função das suas caraterísticas e capacidades individuais e específicas, do seu potencial e/ou do seu rendimento.

Como referido anteriormente, o talento é diverso, contextual e subjetivo. Por isso, embora o olhar de quem leva a cabo o processo de identificação esteja condicionado pelas suas preferências e vivências, importa moldá-lo no sentido de o alinhar com as referências macro do jogar do clube e da equipa. Assim, a ideia de jogo do clube e do treinador conduzem à valorização de um determinado perfil de jogador. No mesmo sentido, também o processo de treino leva a que o desenvolvimento do jogador aconteça num determinado sentido.

Nas idades mais avançadas, os jogadores depois de serem identificados são habitualmente convidados para a realização de períodos de observação. Essas observações são realizadas no contexto específico, isto é, no clube e na equipa onde se perspetiva a integração do jogador. De tal forma, o processo de seleção tem maior fiabilidade. Fiabilidade essa que também é reforçada pelo facto das questões maturacionais terem menor relevância.

Nas idades mais baixas, por norma, após os jogadores serem identificados são chamados para as designadas sessões de deteção do talento. Nas quais o objetivo passa por selecionar e recrutar os potencialmente melhores. No entanto, muito frequentemente, o que acontece é que a escolha acaba por recair sobre os melhores no momento, partindo-se do princípio de que estes serão os melhores no futuro. O que evidencia uma desvalorização da importância do processo de desenvolvimento, de treino e de aprendizagem e a presença de uma conceção inatista do talento. Mesmo sabendo-se hoje que a variável genética tem uma influência muito reduzida para a predição do talento. Como agravante, aquando da realização destes processos, muitas vezes, os responsáveis são influenciados nas suas avaliações e decisões pela precocidade física, que na maioria dos casos resulta de questões maturacionais e/ou do efeito da idade relativa.

“Porque àquele que tem, mais lhe será dado, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até o que tem lhe será tirado.”

Versículo do Evangelho de S. Mateus, Novo Testamento

Destas sessões resulta uma vantagem cumulativa que beneficia os jogadores selecionados – Merton (1968) designou esta vantagem de “Efeito Mateus”. Em termos práticos verifica-se que os jogadores selecionados são expostos a processos de treino de maior qualidade e têm oportunidade de competir em contextos de nível mais elevado. Em sentido oposto, os jogadores não selecionados têm acesso a processos de treino de menor qualidade e a competições de menor exigência.

“É possível olhar para duas sementes e dizer qual delas crescerá mais alto? A única resposta é: É cedo e elas estão ambas a crescer.”

Daniel Coyle, 2009

Sendo que quando mais cedo forem realizadas as sessões de deteção e seleção, mais se acentuará este efeito cumulativo. De tal forma importa proporcionar uma prática de qualidade em treino e competição a um elevado número de jogadores por um período prolongado e retardar o processo de seleção do talento. Assim, o foco deve orientar-se para aquilo que é determinante para a emergência do talento: o processo de desenvolvimento. Consequentemente, poderão tornar-se os processos de identificação e de seleção mais fiáveis.

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