Introdução

O lema “formar a ganhar”, adotado originalmente por um clube de referência no contexto do futebol em Portugal, foi, entretanto, seguido por departamentos de formação de outros clubes nacionais de menor dimensão. A título pessoal, nada tenho contra o lema em questão, no entanto, julgo que o seu emprego e utilidade devem ser cuidadosamente ponderados em função da sua finalidade e, sobretudo, do contexto em que é aplicado. Neste texto exporei, também, alguns problemas que podem advir do “formar a ganhar”, uma vez que o ouvido humano tem uma capacidade extraordinariamente seletiva para fazer ressoar o “ganhar” (parte final da máxima) em prol do objetivo fundamental do futebol de formação: “formar”.

Finalidades

Assente na noção de oposição, o objetivo do jogo de futebol é bipartido: com a posse de bola, ataca-se a baliza adversária para marcar golo(s); sem a posse de bola, procura-se recuperar a bola, evitando que a equipa adversária progrida e marque golo(s) (Castelo, 2004). Decorrente da relação entre golos marcados e sofridos surge a finalidade do jogo: a obtenção da vitória. Desta maneira, “ganhar” faz parte da lógica interna do futebol, pelo que se considera importante que as crianças e os jovens sejam (bem) educados para ganhar no jogo e, de forma genérica, na sua vida pessoal. Contudo, não devemos confundir a intenção com a consequência (figura 1).

Figura 1. Possíveis relações “intenção – consequência” entre formar e ganhar.

O desenvolvimento holístico do jovem praticante é a principal finalidade de “formar”, a intenção que, bem equacionada e estruturada, determinará, consoante os contextos, a curto, médio ou longo prazo, a consequência de vencer. Não entendamos este vencer/ganhar como algo estritamente desportivo, na medida em que contribuir para a formação de um cidadão saudável, proativo, com valores morais e sentido crítico, ainda que não venha a ser futebolista no futuro, deve ser encarado com uma vitória do processo “formar”. Se, ao invés, o “ganhar” imediato assumir posição de enfoque, estaremos a deturpar o processo por força da inversão de prioridades. O “formar” com qualidade jamais será consequência direta de “ganhar” no instante, mesmo perante a argumentação banal de que “a cara de quem ganha é diferente da cara de quem perde”. A motivação de todos os intervenientes deve estar sincronizadamente orientada para a tarefa (processo), não para a diferença de golos no marcador (resultado momentâneo de um jogo).

Contextos

Há quem diga que não há um futebol, há muitos “futebóis”. Eu acredito somente num futebol, mas com vários contextos. No que respeita à entidade clube, cada um está inserido num contexto muito particular e, portanto, as respetivas políticas desportivas e formativas devem ser adaptadas à realidade vigente. O “formar a ganhar” não me choca, por exemplo, ao nível de um clube de dimensão internacional ou nacional – os agora certificados pela Federação Portuguesa de Futebol como entidades formadoras de 5 estrelas –, cujas estruturas de formação estão perfeitamente dotadas de recursos e estratégias para que um jovem talento possa alcançar o alto rendimento, sem descurar a formação académica (carreira dual) (figura 2). Apesar disso, alguns destes clubes não alinham no “formar a ganhar” fácil, isto é, a todo o custo. Colocam as crianças/jovens a competir em escalões etários mais velhos, justamente para que estes experienciem dificuldades/problemas, fomentando o desenvolvimento de competências de índole diversa.

Figura 2. “Formar a ganhar”, lema originalmente adotado por um clube de referência no panorama do futebol português (fonte: record.xl.pt).

Parece-me preocupante o facto de clubes de dimensão regional, alguns sem seniores ou sem determinados escalões etários na sua estrutura (p. ex., Sub-17 e/ou Sub-19), recorrerem à máxima “formar a ganhar” como se isso fosse absolutamente relevante. Para quê? Só o “formar” bem não chega? Ganhar é a finalidade do jogo de futebol e, por isso, há que investir no essencial, não no acessório.

Problemas

Ao longo dos 14 anos que passei no futebol de formação, representei clubes com características bastante distintas. Num deles, o lema do departamento de formação era, precisamente, “formar a ganhar”. Não obstante, em inúmeras anotações pessoais que fui reunindo e constatações que fui formulando em contacto com os meus colegas, apercebi-me de que do “formar a ganhar” resultava uma tendência clara do ouvido dos treinadores para reter a última parte da mensagem: “ganhar”. Escusado será dizer que isso, juntamente com as expectativas geradas em torno da equipa técnica (pais/encarregados de educação, diretores, dirigentes, empresários, etc.), determina uma carga psicológica adicional sobre o treinador, que o leva, em certos momentos da época, a tomar decisões que não abonam a favor do “formar”, mas sim do “ganhar”. Se alguns conseguem conviver sem mácula com isso no curto prazo, decerto compreenderão que, a médio/longo prazo, os “frutos” colhidos não terão a mesma qualidade. Mais uma vez, o acessório tende a sobrepor-se ao essencial por uma mera questão de pormenor.

Figura 3. #Formaraganhar: enfatizar o “ganhar” pode ser contraproducente.
(foto: Manuel Pereira)

Por sua vez, a ênfase imposta no ato de ganhar, quando interpretada à letra pelos mais jovens, pode ser contraproducente para a sua maturação psicológica, pois a capacidade para lidar com a contrariedade, a frustração e a desilusão não é devidamente estimulada. Aquando de um colóquio promovido pela organização do Torneio da Pontinha, em 2006, um treinador do FC Porto queixava-se do facto de a sua equipa estar a ganhar havia n jogos consecutivos. Dizia este treinador que ganhar é bom, dá moral e motivação para continuar a trabalhar, porém, receava o tempo em que surgisse uma derrota e, principalmente, o modo como os seus pupilos iriam reagir. O problema é que o futebol, tal como a vida quotidiana, não é um “mar de rosas”. Temos de ser resilientes, saber adaptar, refletir e reconhecer quando estamos menos bem. Esses aspetos trabalham-se, treinam-se, enfrentando a adversidade. Por vezes, a derrota é boa conselheira.

Conclusão

Como é óbvio, todos nós gostamos de ganhar, de ser bem-sucedidos. É algo natural e é legítimo que lutemos por isso. Construir um castelo com as pedras que apanhamos é um processo, é um caminho, que teremos de estar dispostos a percorrer. Neste âmbito, “formar a ganhar” é um lema que pode estar ajustado a um determinado contexto que almeja o rendimento a médio/longo prazo, mas que não faz sentido que seja replicado noutro completamente díspar. Vencer pode passar por não marcar mais golos do que a equipa adversária, assim se equacionem as necessidades formativas das crianças/jovens e se avaliem os seus progressos. Quantos de nós, treinadores, já ficámos com amargo de boca em jogos que vencemos e, pelo contrário, com sensações positivas em partidas que terminaram em derrota? Ganhar é relativo e deve ser consequência de “formar” com qualidade. Embora expressões como o “formar para ganhar” sejam atualmente mais consentâneas entre os agentes desportivos que o “formar a ganhar”, formar será sempre a intenção primordial e, pela sua finalidade de desenvolvimento integral dos jovens, não serve somente a equipa, o clube ou o futebol português, serve, sim, o nosso país.

Referência

Castelo, J. (2004). Futebol – A organização dinâmica do jogo. Cruz Quebrada: FMH Edições.

2 Comentários

  1. Monteiro
    13 Novembro, 2019
    Responder

    “Formar a ganhar” é afastar uma grande percentagem de miúdos entre os 14 e os 19 anos só porque não têm peso e altura.
    Basta ver os gráficos de utilização dos miúdos nascidos no 2º semestre de cada ano (14 aos 19 anos), quer em clubes quer em selecções para verificar que ninguém quer saber de formar o que interessa é ganhar.

    • 13 Novembro, 2019
      Responder

      Caro Monteiro,

      O Efeito da Idade Relativa é comum na prática de diversos desportos em idades infantojuvenis e no futebol de formação, em particular, não é exceção. Sim, em grande parte sucede devido à intenção dos treinadores em “ganhar no imediato”, tal como está descrito no artigo, até porque os dirigentes, os pais, outros familiares e a sociedade no global, ainda tende a avaliar os treinadores pelos resultados obtidos no fim-de-semana, em vez de julgar as competências que os treinadores desenvolvem nos jovens praticantes. É um questão cultural que não abona a favor da formação. Uma solução, que entretanto já foi investigada num clube inglês, pode passar pelo agrupamento das crianças/jovens em função do seu estádio maturacional (“bio-banding”), ainda que as conclusões do estudo em causa (Abbott et al., 2019) indique que o ideal é conciliar competições organizadas pela idade cronológica com outras que primem pelo agrupamento maturacional. Para mais informação, recomendo a leitura do artigo integral: https://www.mdpi.com/2075-4663/7/8/193

      Cordialmente,

      Carlos Almeida

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