Introdução

Que haja treinadores ou autores que se vangloriem de criar a sua própria «ciência», contendo a validade subjetiva que cada leitor possa atribuir, até não me faz grande confusão, mas negligenciar o significado das palavras da nossa língua materna é algo que transcende o admissível e só gera desinformação. Nas lides do treino desportivo e fora delas – sobretudo, nos muitos programas de análise futebolística ou «futeboleira» da televisão portuguesa – fala-se em fases, momentos, etapas, transições e afins, com um tamanho à-vontade somente comparável à atual barafunda do futebol português. Grave é esta desinformação partir de pessoas com responsabilidades formativas no fenómeno (treinadores, dirigentes, autores e professores). Se, para uns, há as fases ofensiva e defensiva do jogo, definidas por uma equipa deter ou não a posse de bola (Queiroz, 1983; Castelo, 2004), para outros o jogo tem quatro momentos: transição ofensiva, organização ofensiva, transição defensiva e organização defensiva (Silva, 2008; Daniel, 2016). Outros, ainda, defendem que, afinal, os quatro momentos devem ser cinco, pois os esquemas táticos – situações fixas do jogo ou bolas paradas – enquadram-se num contexto diferente dos demais «momentos». Infelizmente, não me parece que esteja a ser feito um esforço coletivo para que haja um consenso para a terminologia adotada.

A assunção vigente é mais ou menos a seguinte: a cada ideia/teoria, a respetiva terminologia. A fase confunde-se com o momento e a etapa confunde-se com a fase. Quantos de nós não ouvimos já a célebre tirada «primeira fase de construção»? Sim, mas a construção não é uma etapa da fase ofensiva do jogo? Dentro da etapa de construção há fases? A construção é uma fase do momento de organização ofensiva? Pois bem, é a barafunda total. Já diz o ditado popular: «em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão». No caso, não falta pão, apenas consenso. Deste modo, é de todo útil que haja um esclarecimento cabal da terminologia e dos conceitos adotados no nosso futebol, para que todos possam aludir ao mesmo sem incorrer em interpretações erróneas ou ambíguas.

O que nos diz o dicionário?

Consideremos, em primeira instância, o dicionário de língua portuguesa online da Porto Editora (http://www.infopédia.pt):

Fase

Nome feminino

  1. Etapa ou período de evolução de um processo
  2. Grau de desenvolvimento de um processo ou a fração de período decorrida desde um instante inicial

Momento

Nome masculino

  1. Breve período de tempo, instante
  2. Curta duração
  3. Tempo em que alguma coisa se faz ou acontece; ocasião
  4. Tempo presente; agora
  5. Circunstância, altura, situação
  6. Ocasião oportuna

Etapa

Nome feminino

  1. Qualquer percurso ou distância entre dois pontos determinados que se vence sem parar
  2. Período; estádio

Fases ou momentos de jogo?

Decorrente dos significados dos termos em análise, faz sentido associar a «fase» a processos/acontecimentos que se prolongam no tempo (∆t). O «momento» remete-nos para instantes, escassos segundos que, eventualmente, podem ser associados ao que a ciência designa por «transições de fase» (Vogelbein, Nopp, & Hökelmann, 2014; Malta & Travassos, 2014), ou seja, quando a equipa perde a posse de bola (transição ataque-defesa ou transição defensiva) e quando a equipa recupera a posse de bola (transição defesa-ataque ou transição ofensiva).

Como as fases de um dia (diurna e noturna), a abordagem mais clássica do jogo de futebol postula também duas fases (ofensiva e defensiva) que, contudo, nos parece ser redutora para a compreensão de comportamentos individuais e coletivos inerentes aos momentos de transição de fase. A proposta que a seguir se apresenta não foi elaborada por mim. Recentemente, ouvi-a numa sessão da disciplina «Técnico-tática», lecionada pelo prof. José Borges, no Curso de Treinadores de Futebol – UEFA Basic (Grau II), organizado pela Associação de Futebol do Algarve. Mais tarde, ao ler um capítulo sobre «fundamentos e práticas para o ensino e treino do futebol» (Garganta, Guilherme, Barreira, Brito, & Rebelo, 2013), pude confirmar a sua pertinência. Fundamentalmente, destaco-a por ser o modelo teórico de fases e momentos do jogo mais bem conseguido de entre os que conheço (figura 1).

Figura 1. Modelo teórico das fases e momentos do jogo de futebol.

Conforme podemos observar na figura 1, este modelo teórico contempla duas fases e dois momentos de jogo. A equipa que tem efetivamente a posse de bola encontra-se em fase ofensiva ou, de acordo com a nomenclatura contemporânea, em organização ofensiva. Analogamente, a equipa sem a bola gera dinâmicas comportamentais relativas à fase de organização defensiva, de forma a proteger a baliza e a recuperar a posse de bola. As transições de fase correspondem aos momentos de transição defensiva e de transição ofensiva. Neste contexto, onde se encaixam os esquemas táticos (bolas paradas)? Por questões regulamentares, as situações fixas do jogo envolvem períodos em que a bola está irremediavelmente na posse de uma das equipas (a exceção é a bola ao solo). Até à sua marcação, a bola não pode ser disputada, o que nos leva a incluir os esquemas táticos nas fases de organização ofensiva ou de organização defensiva. Por exemplo, se a nossa equipa está a atacar e um extremo sofre uma falta (esquema tático ofensivo 1: pontapé livre lateral), nós continuamos em posse de bola. Se do pontapé livre lateral resulta um pontapé de canto (esquema tático ofensivo 2), a equipa mantém-se na fase de organização ofensiva. Na fase defensiva, se o nosso médio interior interceta um passe para a linha lateral (esquema tático defensivo 1: lançamento lateral), os adversários conservam a posse de bola e a nossa equipa permanece em organização defensiva.

Fases e etapas: são sinónimos ou conceitos distintos?

No que respeita à diferenciação entre fases e etapas, entendemos que uma fase pode subdividir-se em duas ou mais etapas (ou estádios). A figura 2 expõe uma adaptação das três etapas propostas por Castelo (2004) para o que designamos serem as fases de organização ofensiva e defensiva.

Figura 2. As fases e as etapas do jogo (adaptado de Castelo, 2004).

Em organização ofensiva, uma equipa pode fazer evoluir o seu jogo por três etapas. Assumimos os dois primeiros terços do campo como zonas propícias à etapa de construção de jogo que, em função da posição da bola, se pode subdividir em construção baixa (primeiro terço) e construção alta (terço intermédio). A etapa de criação de situações de finalização implica que ocorram desequilíbrios/perturbações na organização defensiva adversária conducentes à oportunidade de rematar à baliza, o que acontecerá com particular incidência no terço ofensivo do campo. A etapa de finalização propriamente dita impõe que haja francas possibilidades de marcar golo, pelo que a circunscrevemos ao espaço onde são concretizados a grande maioria dos golos. Por sua vez, a cada etapa ofensiva corresponde uma etapa oposta de cariz defensivo, ou seja, impedir a construção, impedir a criação e impedir a finalização, respetivamente. Neste âmbito, fases e etapas são conceitos distintos, ainda que complementares.

Transições ou métodos de jogo?

«É uma equipa que joga em transições rápidas».

Esta é talvez uma das expressões mais usadas atualmente para classificar o modo de jogar de uma equipa com a posse de bola. Desengane-se quem pensa que só sucede com comentadores desportivos… Anteriormente, foi referido que a transição é um momento de jogo que, por natureza, é rápido, mas pode muito bem não implicar a progressão no campo para visar a baliza adversária (p. ex., retirar a bola de uma zona de pressão através de um passe lateral para um corredor menos congestionado de oponentes). A transição é rápida, mas a organização ofensiva posterior pode dar lugar a um tipo de jogo mais paciente e elaborado, sem envolver «verticalidade» e a busca desenfreada pelo alvo da outra equipa.

Na realidade, falamos dos métodos de jogo ofensivo, sendo três os mais referenciados pela nossa literatura: (1) ataque posicional ou organizado, (2) ataque rápido e (3) contra-ataque (Castelo, 2004). Em síntese, o ataque posicional pressupõe uma fase de organização ofensiva mais prolongada, com um maior número de passes e de jogadores envolvidos no ataque, no intuito de criar perturbações na organização defensiva adversária em instantes oportunos, pela variação do ritmo de jogo. Tanto o ataque rápido como o contra-ataque são caracterizados por processos ofensivos mais curtos, diretos e objetivos, com um menor número de passes (geralmente em progressão) e de jogadores envolvidos, diferenciando-se por haver ou não uma organização defensiva adversária minimamente equilibrada. Uma situação de 6v4+Gr com a linha defensiva estruturada (ataque rápido) é diferente de um contexto de 6v2+Gr na sequência de um pontapé de canto defensivo (contra-ataque). Os métodos de jogo ofensivo permitem-nos caracterizar a fase de organização ofensiva das equipas e, embora resultem frequentemente de uma transição ofensiva, não devem ser proclamados como tal.

Nota conclusiva: a terminologia e o futebol de formação

A adoção de uma terminologia correta e clara depende de todos nós e é muito mais relevante do que à primeira vista possa parecer. Se, numa época, um treinador pede a um(a) jovem para não perder logo a posse de bola no momento de transição ofensiva e, na época seguinte, outro treinador solicita que, sempre que receber a bola, lance «transições rápidas» em profundidade (i.e., passes longos), é lógico que o aprendiz fique baralhado e não se aproprie de conceitos básicos da modalidade que o apaixona. É quase como estarmos a formar um engenheiro químico sem ensinarmos os elementos da tabela periódica e as suas características. A missão de formar está, à partida, relacionada com a capacidade de transmitir ideias/conhecimentos de maneira clara e concisa.

No que respeita ao futebol, Portugal é hoje reconhecido em todo o mundo. O que por cá se produz é acompanhado por agentes desportivos e adeptos das mais diversas nacionalidades. Um consenso terminológico é o mínimo que podemos exigir para promover o conhecimento e as boas práticas adquiridas pelos treinadores portugueses nas últimas décadas, em especial junto dos outros países lusófonos. Sem pretensiosismos, este artigo não visa celebrar o consenso previamente apregoado com absolutismo. Antes, assume-se como um ponto de partida para congregar ideias válidas de diversos autores portugueses consagrados. Se, dentro das quatro linhas, se incute o pensamento coletivo como uma determinante do sucesso em competição, fora das quatro linhas exacerba-se o individualismo pela expressão sonante ou ideia brilhante, ignorando um dos pilares que melhor distingue a espécie humana: a qualidade da comunicação por meio da palavra.

Referências

Castelo, J. (2004). Futebol – Organização dinâmica do jogo. Cruz Quebrada: FMH Edições.

Daniel, C. (2006). Futebol a sério (3ª edição). Lisboa: A Esfera dos Livros.

Garganta, J., Guilherme, J., Barreira, D., Brito, J., & Rebelo, A. (2013). Fundamentos e práticas para o ensino e treino do futebol. In F. Tavares (Ed.), Jogos Desportivos Coletivos. Ensinar a jogar (pp. 199-263). Porto: Editora FADEUP.

Malta, P., & Travassos, B. (2014). Caracterização da transição defesa-ataque de uma equipa de Futebol. Motricidade, 10(1), 27-37.

Queiroz, C. (1983). Para uma teoria de ensino/treino de futebol. Ludens, 8(1), 25-44.

Silva, M. (2008). O desenvolvimento do jogar, segundo a Periodização Táctica. Pontevedra: McSports.

Vogelbein, M., Nopp, S., & Hökelmann, A. (2014). Defensive transition in soccer – are prompt possession regains a measure of success? A quantitative analysis of German Fußball-Bundesliga 2010/2011. Journal of Sports Sciences, 32(11), 1076-1083.

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