Introdução

Agora que a época 2017/2018 dá o pontapé de saída, penso que é o momento ideal para todos refletirmos sobre as nossas atividades práticas enquanto treinadores. Há alguns meses atrás, num curso de treinadores de futebol na Associação de Futebol do Algarve, discutia-se o estado do futebol de formação na região. A principal ideia que foi lançada pelo coordenador técnico (prof. José Borges), e a qual aqui subscrevo, é que antes de criticarmos a falta de espaço para treinar, a escassez de bolas ou coletes, o reduzido número de jogadores no plantel ou o «resultadismo» dos dirigentes, etc., devemos pensar no que podemos fazer para potenciar as condições e as circunstâncias existentes e que, no fundo, constituem a nossa realidade. O repto serviu de mote a este artigo e que tem como objetivo apresentar algumas evidências científicas sobre as atividades propostas pelos treinadores de futebol de formação nas sessões de treino. Em última instância, pretende-se que o texto estimule a reflexão e promova uma implementação mais cuidada e qualitativa do instrumento mais poderoso que o treinador dispõe para intervir e potenciar o seu contexto: o exercício de treino.

As atividades de treino no futebol de formação: Evidências científicas

Nos meandros do treino desportivo, a brecha entre a ciência e a prática tem vindo a estreitar-se nos últimos tempos. A investigação tem tomado mais atenção às determinantes da performance e ao desenvolvimento da perícia no desporto e, inversamente, os treinadores estão mais interessados nas aplicações práticas que advêm da ciência. Nesta secção foram selecionados três artigos muito interessantes para entendermos a problemática das atividades propostas pelos treinadores nas sessões de treino, designadamente, ao nível do futebol de formação. Contudo, as evidências disponíveis não se esgotam nos trabalhos a seguir retratados.

Ford, Yates e Williams (2010) investigaram as atividades de treino propostas por 25 treinadores do futebol de formação em Inglaterra, nos escalões etários Sub-9, Sub-13 e Sub-16, a trabalhar em três níveis distintos de prática: elite (n = 9; academias de formação de clubes profissionais da FA Premier League), sub-elite (n = 9; centros de excelência de clubes profissionais ingleses) e recreativo (n = 7; clubes amadores e semiprofissionais ingleses). Os investigadores definiram dois tipos de atividades essenciais, cuja terminologia será utilizada ao longo do texto:

  • Formas de treino, que incluem situações de treino físico, exercícios técnicos analíticos e circuitos técnico-físicos;
  • Formas de jogo, compostas por jogos reduzidos/condicionados e situações jogadas como, por exemplo, 2v1+Gr.

As conclusões foram, no mínimo, alarmantes: em média, cerca de 65% do tempo das sessões foi destinado a formas de treino e os restantes 35% a formas de jogo (figura 1).

Figura 1. Percentagens de tempo da sessão despendido em formas de treino (cinzento) e formas de jogo (preto), em função do escalão etário – «age» (a) e do nível de prática – «skill» (b) (Ford et al., 2010).

Conforme podemos observar, independentemente do escalão etário e do nível de prática (mesmo no nível de elite!), os treinadores ingleses despenderam mais tempo das sessões de treino em exercícios que são considerados como menos relevantes para a aprendizagem efetiva das diversas componentes do jogo de futebol. Não nos iludamos, são as formas de jogo que permitem que os jovens desenvolvam efetivamente as ações específicas da modalidade. Por um lado, estas atividades são capazes de replicar fidedignamente as exigências da situação competitiva; por outro lado, por serem tarefas mais representativas, permitem o estabelecimento e a afinação de relações funcionais entre a perceção do envolvimento (i.e., bola, espaço, companheiros de equipa, adversários, etc.) e a execução de ações motoras inerentes à resolução dos problemas contextuais do jogo. Neste sentido, invoco a velha questão do pianista: não aprende a tocar a correr à volta do piano!

Nesta mesma linha de investigação, o estudo de Hornig, Friedhelm e Güllich (2016) contou com a participação de 102 jogadores alemães: 52 profissionais da Bundesliga (18 pertencentes à seleção alemã) e 50 amadores a atuar entre a 4ª e a 6ª divisão do país. O propósito do trabalho foi fazer uma análise retrospetiva (1) dos volumes de prática organizada de futebol ao longo das suas carreiras, incorporando a microestrutura da prática (proporções de treino físico, exercícios analíticos e formas de jogo), (2) da prática informal do jogo (i.e., prática não organizada com fins de lazer) e (3) do envolvimento noutras modalidades desportivas. Dentro da microestrutura da prática organizada, os autores evidenciaram que o treino físico aumentou ao longo das etapas de desenvolvimento: infância (≈13%), adolescência (≈14%) e idade adulta (≈23%), ao contrário do reportado para as formas de jogo: infância (≈52%), adolescência (≈45%) e idade adulta (≈40%) (figura 2).

Figura 2. Proporções de treino físico (cinzento), exercícios técnicos (preto) e formas de jogo (branco) em contexto de prática organizada nos clubes pelos jogadores profissionais da Bundesliga (incluindo os convocados para a seleção principal da Alemanha) (Hornig et al., 2016).

Curiosamente, os jogadores convocados para a seleção nacional alemã diferiram dos jogadores amadores ao despenderem mais tempo em prática informal de futebol durante a infância; neste período da vida e ao longo da adolescência experienciaram, também, mais modalidades desportivas, apresentando um maior ecletismo. Por sua vez, a especialização no futebol ocorreu mais tardiamente, com volumes mais elevados de prática organizada somente a partir dos 22 anos de idade. A conclusão destaca que os jogadores que atingiram patamares de rendimento mais elevados acumularam, comparativamente ao observado noutros estudos do mesmo âmbito, menores volumes de prática organizada em clubes/escolas de futebol, embora registando proporções mais significativas de atividades de jogo nas suas mais diversas valências (na rua, no treino, na escola, etc.).

Mais recentemente, a Austrália adotou um currículo nacional para o desenvolvimento de futebol em que, consoante o estágio de desenvolvimento do praticante, assim varia o tipo e a proporção de atividades propostas pelos treinadores à criança/jovem. Não sendo um país de referência nesta modalidade, creio que a ideia não deve ser desvalorizada, nem tão pouco considerada como descabida, até porque teve por base evidências científicas e a tentativa de uniformizar e qualificar os procedimentos técnico-práticos dos treinadores em todo o país. O’Connor, Larkin e Williams (2017) tentaram perceber quais as implicações deste novo currículo nas atividades propostas pelos treinadores na prática e os resultados mais curiosos para este artigo constam na figura 3.

Legenda: «Individual» (atividades individuais); «Paired» (atividades em pares); «Drills» (exercícios técnicos); «SSG» (jogos reduzidos); «Large Games» (jogos de maiores dimensões, ou seja, similares ao jogo competitivo).

Figura 3. Número de treinadores que utilizaram cada tipo de atividade, ao longo das diversas partes da sessão, nas etapas de aquisição de habilidades (a – 10 aos 13 anos de idade) e de treino de jogo (b – 14 aos 17 anos de idade) (O’Connor et al., 2017).

Em termos genéricos, os treinadores prescreveram mais formas de jogo nas sessões de treino (40.9%), sendo o restante tempo destinado a inatividade (31%), formas de treino (22.3%) e transições entre exercícios (5.8%). O tempo de inatividade foi criticado pelos autores e justificado pelas inúmeras paragens dos exercícios, por parte dos treinadores, para ceder instruções/feedbacks. Na estrutura das sessões, os treinadores propuseram mais formas de treino no início (5.4% de atividades individuais e 15.1% de exercícios analíticos), progredindo para formas de jogo em fases mais adiantadas da sessão (15.3% de jogos reduzidos e 24.8% de jogos de maiores dimensões).

A ideia fundamental a reter é a unanimidade da importância das atividades de jogo na formação e aperfeiçoamento de competências específicas do futebol. Em primeiro lugar, o tempo útil de prática também tende a ser mais elevado através do jogo. Em segundo lugar, a literatura científica sobre aprendizagem e desenvolvimento motor sustenta que a interferência contextual, a variabilidade e a aleatoriedade típicas das atividades jogadas promovem o desenvolvimento da tomada de decisão e da inteligência de jogo, facilitando a retenção e a aprendizagem a longo prazo, quando comparadas com outro tipo de atividades como, por exemplo, as formas de treino (O’Connor et al., 2017).

Conclusão

Em plena era da tecnologia e da comunicação, qualquer treinador tem um acesso quase ilimitado a exercícios de treino que, não raras as vezes, são aplicados indiscriminadamente a praticantes com idades e níveis de prática distintos e descurando as particularidades do envolvimento. A adequação dos exercícios aos objetivos formativos, compreendendo as implicações da sua implementação ao nível das necessidades e motivações das crianças/jovens, é uma tarefa nuclear para qualquer treinador desportivo. A própria ciência corrobora a pertinência do lema «aprender a jogar, jogando» ou, alternativamente, «ensinar o jogo através do jogo». De facto, estruturar uma sessão pode compreender um sem número de configurações, contudo, o grosso da prática deve ser destinado ao jogo pelos motivos anteriormente referidos. Como pode haver diversos «futebóis», também poderá haver inúmeras formas de jogo, bastando para tal manipular variáveis como o número de jogadores, as dimensões do espaço, as relações numéricas, o número e as dimensões de balizas/alvos, definir setores/corredores/zonas restritos ou de circulação obrigatória, etc. Isso não implica que exercícios de preparação geral e analíticos sejam completamente descurados. Não, podem e devem ser propostos, mas convém compreender que não são os meios mais propícios para potenciar e modificar o nosso contexto. E a realidade do treinador de formação passa sempre por conseguir transformar o potencial humano através do jogo de futebol.

Referências

Ford, P. R., Yates, I., & Williams, A. M. (2010). An analysis of practice activities and instructional behaviours used by coaches during practice: Exploring the link between science and application. Journal of Sports Sciences, 28(5), 483-495.

Hornig, M., Friedhelm, A., & Güllich, A. (2016). Practice and play in the development of German top-level professional football players. European Journal of Sport Science, 16(1), 96-105.

O’Connor, D., Larkin, P., & Williams, A. M. (2017). Observations of youth football training: How do coaches structure training sessions for player development? Journal of Sports Sciences. doi: 10.1080/02640414.2016.1277034.

3 Comentários

  1. João Silva
    3 Novembro, 2017
    Responder

    Ênfase no jogo:

    http://coachmariosilva.blogspot.pt/2016/11/o-minibasketball-da-fiba.html

    Ênfase no jogo:

    http://www.tenis.pt/desenvolvimento-footer/play-and-stay

    Pedagogia comum a todos os desportos, fico feliz, enquanto pai, de ver o Estoril Praia aplicar.

Responder a João Silva Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado.

Anterior Época 2017-18 FPF CO1 e CO8 Tabela 5 Perguntas Frequentes “Regime de Transferências”
Próximo Abandono Precoce do Desporto