PRINCIPAIS DOENÇAS QUE ASSOLAM O FUTEBOL DE FORMAÇÃO EM PORTUGAL – PARTE I


Introdução

O Futebol é hoje a modalidade mais mediática no panorama nacional e, em decorrência disso, são muitas a crianças que o praticam, na expectativa de se poderem rever nos seus principais ídolos. Este fenómeno pode ser considerado como algo positivo, pois aumenta o número de crianças que realizam atividade física, num país que já evidencia elevados índices de obesidade. Assim, podemos entender a prática de futebol infanto–juvenil como uma mais valia para o aumento da saúde das populações, na medida em que permite que um maior número de crianças realize desporto. Contudo, sabemos hoje que a crença de que o desporto faz bem à saúde, não passa disso mesmo, isto é, de uma crença. Assim, o desporto, e neste caso concreto o futebol, tanto pode fazer bem à saúde, como pode prejudicar a mesma. O que interessa não é apenas a prática do desporto em si, mas a qualidade do mesmo.

Deste modo, importa atentar nos principais aspectos que obstam ao desenvolvimento de uma prática futebolística que seja verdadeiramente potenciadora de saúde.

Neste artigo, procuramos elencar uma série de problemas que, em nosso entender, não contribuem para o desenvolvimento do futebol infanto- juvenil. A estes problemas atribuímos o nome de “doenças”, tal o mau estar que as mesmas podem trazer ao futebol de formação.

Assim, este artigo elenca, analisa e escalpeliza cada uma dessas maleitas, revelando comportamentos nefastos de treinadores, pais e dirigentes e é fruto da experiência, estudo e reflexão dos seus autores.

Este artigo, não tem como finalidade penalizar, punir ao sancionar quem quer que seja, mas tem como objetivo colocar a pensar todos os intervenientes no futebol de formação.

Desejamos que realizem a sua leitura de modo crítico a fim de, no final, possam ter realizado boas reflexões.

1ªDoença “Cristianismo ou Messianismo”

A Primeira maleita, identificámo-la como o “Cristianismo ou Messianismo”.
Numa primeira análise, podemos ser levados a pensar que se trata de um problema de cariz religioso, porém, nada tem que ver com essa situação. Designámos por “Cristianismo ou Messianismo” a idolatria a estes dois grandes jogadores de futebol (Cristiano Ronaldo e Messi). Se é bem verdade que as crianças e jovens necessitam de exemplos de elevados desempenhos desportivos e de capacidade de superação, também não é menos verdade que utilizamos estes jogadores como rótulos para catalogar os nossos miúdos. Assim, ou são um Ronaldo ou um Messi, ou são necessariamente uns “falhados”.

Esta forma de catalogar indica que, para nós treinadores e pais, o futebol não é encarado como mais um pilar da vida dos jovens, mas como O PILAR, a bóia de salvação, isto é, o futebol não é assumido como uma forma de potenciar saúde nos nossos jovens, mas como um meio para garantir a subsistência futura. A Idolatria chega a tal ponto que alguns jovens, motivados apenas extrinsecamente pelas falsas promessas de chegarem a ídolos, desistem da prática do futebol, assim que entendem que as suas competências jamais o catapultarão para patamares de excelência planetária.

Reduzir o Futebol a CR7 e a Leo Messi é um dos maiores erros que podemos cometer no futebol de formação, porquanto damos a entender às crianças que eles são a meta, o caminho único e que tudo o resto é perda de tempo. Saibamos motivar intrinsecamente os nossos jovens, despertando neles o gosto por jogar futebol, fazendo da sua prática uma experiência autotélica. Jogar futebol, por si só, deverá ser suficientemente bom e motivador.

 2ª Doença “filhos clone”

Algumas das crianças que hoje iniciam a prática do Futebol em Portugal, fazem-no por pressão dos progenitores. Alguns pais almejaram ser profissionais de futebol e, por este ou aquele motivo, viram goradas as suas expectativas. Alguns porque não tinham de facto talento para tal.

Outros dizem, por “falta de sorte” e outros até porque não tiveram apoio parental. Deste modo, os Pais ficam com uma sensação amarga na boca por não terem cumprido o seu sonho, o seu projecto de vida. Assim, projectam nos seus filhos as empreitadas que não conseguiram realizar, como se os seus “rebentos” fossem uma segunda oportunidade de Deus para, finalmente, poderem pôr de pé seus projectos. Assim, muitas crianças nascem com o seu ritmo de vida traçado, com planos pré concebidos, com caminhos perfeitamente definidos.

Nestes projectos pré concebidos pelos pais, não há lugar para os planos das crianças, nem para os seus desejos pessoais. Tudo está, “perfeitamente” definido.

As crianças passam a ser um clone de seus pais, uma extensão dos mesmos, uma segunda oportunidade divina para cumprir desejos que ficaram pelo caminho e que, agora, devem ser escrupulosamente cumpridos.  Este comportamento dos pais é castrador do desenvolvimento da autonomia dos filhos e pior que isso, impõe o limite da sua “felicidade”. Caros pais e mães, por mais cruel que vos possa parecer, os filhos são vossos, mas a vida deles não. Deixemos que as nossas crianças sejam felizes na prática da modalidade que mais apreciam jogar e não façamos projectos que, na maioria das vezes, esbarram nos desejos das próprias crianças.  O maior dever de um pai é fazer dos seus filhos, pessoas felizes.

 3ªDoença: Tático – Centrismo

Não existem hoje dúvidas de que o processo táctico assume particular relevância nos jogos desportivos colectivos, porquanto estes são essencialmente jogos de tomadas de decisão.

Concordo, aceito e defendo que a esmagadora maioria das tarefas de treino deverão conter os ingredientes típicos que constrangem a tomada de decisão, isto é, colegas, adversários, regras, balizas e transição de fases de jogo. Por isso, estamos em total sintonia com a ideia de que o Treino de Futebol deverá ter como matriz, como core, o treino dos aspectos tácticos. Contudo, nos últimos tempos, temos verificado o advento de novas correntes de treino -com enorme validade prática – mas que, porém, relegam para o silêncio o treino das qualidades físicas e até mesmo das técnicas e, com esta visão, não podemos estar de acordo.

Apesar de considerarmos que o treino da dimensão táctica deverá ser o eixo central do trabalho de um treinador, também estamos convictos – e a ciência assim o evidência – que o treino das qualidades físicas e técnicas não pode ser negligenciado.
Esta premissa assume particular destaque quando falamos de treino Infanto-Juvenil.

As crianças e os jovens deverão, em primeiro lugar, desenvolver um amplo e alargado repertório motor, isto é, possuir uma elevada literacia física, desenvolvendo todo o seu potencial coordenativo. Correr, saltar, lançar, chutar, subir e descer, devem ser tidos em consideração em qualquer programa de treino com crianças, independentemente da modalidade que se pratique. Contudo, não precisamos de ir muito longe para verificar que em muitos treinos de crianças (5,6 e 7 anos), impera aquilo que designámos por Ditadura Táctica, porque as tarefas de treino às quais as crianças são sujeitas são, muitas vezes, cópias fiéis do treino dos adultos, com complexidades e dificuldades que não se coadunam com o nível dos pequenos.  Caros treinadores, não se deixem seduzir pela vitória fácil, a curto prazo, porque com crianças, o sucesso deve ser medido pela alegria que as mesmas revelam em treino e não pelas vitórias nos jogos.

Uma criança jamais poderá ser “boa” tacticamente, se não tiver boas qualidades técnicas e físicas, pois estas são as bases para se decidir bem no jogo, De que vale a um atleta saber o que deve fazer num dado momento, se depois não o sabe executar? A execução é uma das fases importantes do comportamento táctico. Deixem as crianças, serem crianças.

PAIS, não se questionem se a equipa dos vossos filhos (5,6,7,8,9 anos), não revela o chamado “fio” de jogo, pois não é espectável que o tenham nesta fase. Assim, não pensem que os vossos filhos vão reproduzir a forma de jogar do Barcelona, pois apesar disso ser muito belo, não está ao alcance de todos. Preocupem-se, antes, se o jogo terminou com resultados de 0-0 ou 1-1, pois isso sim é constrangedor da motivação das crianças.

4ª Doença – “O Mourinho dos Infantis”

Muitos dos jovens treinadores que iniciam a sua prática, fazem-no com os escalões de formação, designadamente, Traquinas, Benjamins e Infantis.

A expetativa, legítima, destes jovens treinadores é chegar um dia ao alto rendimento, isto é, ser treinador profissional de futebol. Até aqui, nada de mal se passa, porém, o grande problema que se coloca é que alguns destes treinadores encaram os seus jovens como um degrau para chegar ao mais alto nível, isto é, entendem que estas crianças deverão servir os seus intentos desportivos. Assim, encaram o treino com jovens como se de um treino de alto rendimento se tratasse, fazendo exigências que não se coadunam com o nível de desenvolvimento das crianças.

No fundo, a ideia basilar, porém equivocada, dos jovens treinadores é que precisam de ganhar campeonatos de benjamins e infantis para poder ir galgando todos os patamares até aos seniores. Deste modo, os treinos das crianças tornam-se “miniaturas”, dos treinos com os seniores, com exigências muito próximas da alta competição. Assim, cada derrota passa a ser encarada como um fracasso e ganhar passa a ser o único caminho possível. Cada golo falhado passa a ser motivo de escárnio e cada golo consentido algo de inquirição jurídica. Cada treino passa a ser perspectivado como uma preparação para a guerra e cada jogo passa a ser uma batalha.

Alguns treinadores ficam com a obsessão de serem campeões de benjamins e infantis e esquecem-se do verdadeiro significado do Desporto Infanto-juvenil. Afinal, alguém se recorda dos campeões de benjamins ou infantis das épocas anteriores? Algum treinador chegou ao alto rendimento por ter sido tri campeão de infantis ou iniciados?

Posto isto, damos o seguinte conselho a todos os treinadores: QUEM QUISER CHEGAR AO ALTO RENDIMENTO E NÃO TIVER PACIÊNCIA PARA ESPERAR, POR FAVOR, NÃO UTILIZE OS JOVENS PARA ESSE FIM. COMECE POR TREINAR LOGO SENIORES.

Ser um “Mourinho nos infantis”, isto é, ganhar muitos troféus nos escalões de formação, não faz de ninguém treinador de alto rendimento. Se atentarmos aos treinadores profissionais de futebol, veremos que poucos, mas mesmo muito poucos, treinaram benjamins ou infantis (nem estamos mesmo a ver nenhum). Quanto muito, alguns deles treinaram juvenis e juniores.

ATENÇÃO, não estamos a desvalorizar a conquista de troféus nos escalões de formação nem estamos a afirmar que ganhar não deva ser um dos objetivos com jovens. Estamos é a afirmar convictamente que o Treino Infanto-juvenil não pode servir como rampa de lançamento para o Alto Rendimento, porque esta interpretação é totalmente errada.

5ª Doença : Os clubes Eucaliptos

O Futebol é hoje a modalidade mais praticada em Portugal e muitas são as causas para essa situação. Não temos dúvidas que o facto de o futebol ser o desporto mais mediático no nosso país, leva a que muitas crianças pretendam praticá-lo, na medida em que se identificam com os seus ídolos. Vemos este dado como algo positivo, pois o primeiro objetivo dos treinadores é aumentar o número de praticantes da sua modalidade, pelo que quantas mais crianças praticarem futebol, melhor. Tudo isto tem contribuído para o advento de mais escolas de futebol de formação que visam dar resposta a esta exponencial aumento do número de crianças que procuram jogar. Até aqui, nada de mal, bem pelo contrário. Perguntam agora vocês, o que isto que ver com os eucaliptos?

Os eucaliptos são considerados uma espécie de árvores invasora, na medida em que se implantam com facilidade em qualquer habitat, porém, obstando ao desenvolvimento das espécies nativas, isto é, onde há eucalipto, há perigo para a existência de outras espécies locais. Ora, nos últimos anos têm surgido uma série de eucaliptais (clubes) que devido ao seu mediatismo, sugam as restantes colectividades nativas (clubes locais).
Isto é, aparecem hoje escolas de futebol que, devido ao seu peso mediático, se implantam rapidamente em qualquer contexto (localidade), levando muitas vezes à quase extinção das outras espécies já existentes (clubes locais).

Três motivos devem levar-nos a refletir:

1- Os clubes locais deverão pensar porque razão deixaram de ser apetecíveis para os jovens e seus pais. Será que continuam a manter os mesmos hábitos de há três décadas atrás, não se ajustando às novas realidades?

2- Será que estes clubes eucaliptos serão resposta para todas as crianças que querem jogar futebol, quando muitos deles cobram pequenas fortunas, isto é, mensalidades principescas?

3- Caros pais, será que gostam de pagar mais por um serviço que podia custar-vos bem menos e, muitas vezes, com mais qualidade? Será que quando compramos maças, atendemos apenas ao seu aspecto exterior, ou interessa mais a qualidade e o sabor da mesma?

Será que o emblema e a cor das camisolas são um garante de qualidade para os vossos filhos?

Será que já se questionaram se os treinadores dos vossos filhos têm formação de base na área das Ciências do Desporto?

6ª Doença: A lei da rolha

Quem me conhece, sabe bem o quanto respeito a função do árbitro de futebol, sobretudo, os que arbitram escalões de formação, porquanto a relação entre o que ganham e o arriscam é muito díspar. Por isso, sou um acérrimo defensor da função do árbitro e bem sei o quão difícil é decidir no momento, visto que o seu processo de tomada de decisão está condicionado por uma série de imponderáveis.
Porém, reconheço que há um aspecto que os árbitros do futebol de formação deverão melhorar e este tem que ver com a capacidade de discernir entre uma ofensa à sua pessoa e uma discordância em relação às suas tomadas de decisão, isto é:
– uma coisa é ofender deliberadamente o árbitro, a sua família, insultando-o e caluniando-o. Por exemplo, chamar-lhe ladrão, gatuno, corrupto, cego…aqui o árbitro não dever ter complacência para com o seu agressor e deverá expulsá-lo do terreno de jogo.

Outra coisa é discordar, com respeito, da decisão do árbitro. isto é, após determinado julgamento do juiz, o treinador não tem de estar de acordo com o ajuizado, Terá de aceitá-lo, porém, num estado democrático tem o direito a não concordar, desde que o faça com o mínimo de respeito. Como exemplo que ilustre o que acabo de dizer, uma frase como “não me parece, senhor árbitro”, não creio que ponha em causa a idoneidade do mesmo. Porém, aquilo que vejo é uma disparidade entre aquilo que é permitido aos treinadores profissionais e aos amadores. Quantas vezes ouvimos os treinadores de elite injuriando de todos os impropérios o árbitro da partida, perante a passividade do mesmo.

Todavia, nos escalões de formação, vemos treinadores a serem expulsos pela mais ínfima opinião. É a isto que nos referimos como a Lei da Rolha.

Atentemos que esta publicação não se trata de uma espécie de catarse da minha parte, pois como digo, orgulho-me de nunca ter sido expulso em jogos oficiais. Contudo, já fui advertido por manifestar apenas e somente o meu desacordo com uma decisão, pese embora sem ofender ninguém.

Friso que respeito muitíssimo a função do árbitro de futebol, mas peço aos que se dedicam aos escalões de formação, alguma parcimónia e destrinça entre desrespeito e desacordo.

Afinal, nos escalões de formação, não são apenas os jovens que andam a aprender.


Continua… Não perca a Parte II em breve.

1 Comentário

  1. Raul Abade
    28 Dezembro, 2019
    Responder

    Porque uma pessoa com doença não pode ser árbitro

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